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Prova ou crime? Gravar conversas nem sempre é permitido.

27 de abril de 2022 por Demetrios Kovelis Advocacia
Direito Processual Penal

Prova ou crime? Gravar conversas nem sempre é permitido.

Fábio Dutra

23 de abril de 2022.

A regra é clara, porém nem tanto. A obtenção de provas por meio de gravações clandestinas ainda gera questionamentos quanto a sua aplicabilidade

Interessante caso - ou “causo”, dado o inusitado do ocorrido – agitou a comunidade jurídica recentemente: uma advogada criminalista gravou sem querer, durante o intervalo de uma audiência de instrução e julgamento no Foro Central Criminal da Barra Funda em São Paulo, uma conversa entre a juíza e a promotora de um processo em que atuava. Diálogo nada republicano, é bem que se diga, em que elas opinavam sobre advogados, réus, testemunhas e fatos, e a juíza ainda instruía a promotora a fazer pedidos que seriam deferidos por ela prontamente – em desfavor dos acusados, por óbvio.

Não nos cabe aqui, porém, um maior aprofundamento sobre a suspeição da magistrada – que foi devidamente arguida – ou sobre a paridade de armas entre acusação e defesa tão desrespeitada em nosso país cotidianamente. Nos interessa particularmente avaliar os aspectos da interceptação em si, eventual imputação de crime por conta de tal captação e sua possível licitude como prova em um processo judicial. Afinal, pode isso, Arnaldo!?

Primeiramente, vamos aos fatos. A advogada ativou o gravador do celular durante uma audiência para facilitar seu trabalho posterior de reconstituição do que fosse falado para as alegações finais escritas a serem apresentadas ao juízo antes da sentença. Após a instrução (produção de provas como a inquirição de testemunhas, de peritos, de assistentes técnicos, etc), foi dado um tempo para que os advogados saíssem da sala com seus clientes para prepará-los para o interrogatório pessoal, último ato da audiência. Nesse ínterim, o celular ficou dentro da sala de audiência gravando tudo – e acabou por captar o que não devia.

A advogada usou a gravação para pedir a suspeição da juíza, ao passo que a magistrada agiu para que a causídica fosse processada criminalmente pelo crime de captação ambiental ilegal, art. 10-A da Lei 9296/96, a Lei de Interceptação Telefônica. E, afinal, há crime? A resposta é não. Pode então uma gravação obtida assim ser utilizada em um processo judicial? Depende.

Há três tipos de registros de conversas, ambientais ou telefônicas, que merecem exame jurídico: (i) a interceptação, que é aquela feita pela autoridade policial e é lícita por certo período desde que cumpridos certos requisitos e com autorização judicial prévia; (ii) a escuta, feita por terceiro com conhecimento de um dos interlocutores, também ilícita sem um mandado judicial prévio; e (iii) a gravação, que é aquela feita por um dos interlocutores sem o conhecimento dos outros.

Há três tipos de registros de conversas, ambientais ou telefônicas, que merecem exame jurídico: (i) a interceptação, que é aquela feita pela autoridade policial e é lícita por certo período desde que cumpridos certos requisitos e com autorização judicial prévia; (ii) a escuta, feita por terceiro com conhecimento de um dos interlocutores, também ilícita sem um mandado judicial prévio; e (iii) a gravação, que é aquela feita por um dos interlocutores sem o conhecimento dos outros.

INTERESSANTE CASO AGITOU A COMUNIDADE JURÍDICA RECENTEMENTE: UMA ADVOGADA GRAVOU SEM QUERER UMA CONVERSA ENTRE A JUÍZA E A PROMOTORA DE UM PROCESSO EM QUE ATUAVA E CAPTOU UM DIÁLOGO NADA REPUBLICANO

No caso da advogada, partiu-se de uma gravação – o que é lícito – e acabou por ocorrer uma interceptação – o que é ilegal e até potencialmente crime. Portanto, a ação começou totalmente legítima. O Código de Processo Civil em seu artigo 367, §§ 5º e 6º permite expressamente a gravação de audiências, inclusive pelas partes. Além de que o § 1º do artigo 10-A da Lei 9296/96, aquele do crime de captar conversas ilegalmente, isenta o integrante do diálogo: “Não há crime se a captação é realizada por um dos interlocutores”.

Assim, no momento em que a advogada saiu da sala, mas o celular continuou a captar, mudou-se de uma gravação – algo lícito feito por um dos interlocutores – para uma interceptação ilegal. Ilícita, portanto, e crime em teoria – por isso a magistrada insistiu no processo criminal. Entretanto, mesmo ilícito, tal áudio foi usado para arguir a suspeição da juíza e foi aceito pelo Tribunal de Justiça como prova mesmo assim. Por quê? Porque admite-se a prova ilícita como meio de defesa, e só de defesa, no processo penal – e só no processo penal.

Fica a pergunta: e por que então a ação penal contra a advogada não prosperou e ela não foi responsabilizada pela interceptação ilegal? Porque não houve dolo, a vontade de agir criminosamente. Ela não tinha a intenção de gravar uma conversa inapropriada que nem tinha como saber que ocorreria, de forma que o fato, portanto, é atípico. Não há crime sem intenção, salvo na modalidade culposa – e que sequer é prevista para o delito em análise.

E, nesse caso do crime do artigo 10-A da Lei de Interceptação (“realizar captação ambiental (...) para investigação (...) criminal sem autorização judicial”), a questão é ainda mais pormenorizada: é necessário haver um dolo específico, não apenas querer gravar alguém. Há de ser uma conduta pensada para captar a conversa de terceiros com o intuito de usar tal gravação em um processo judicial. O que, convenhamos, seria ainda menos provável no caso em tela se pensarmos que era algo impossível que a advogada previsse a incontinência verbal da juíza e da promotora.

Recapitulemos. A Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso X, garante como direito fundamental, cláusula pétrea, a intimidade e a inviolabilidade da vida privada. Em razão disso, não se admite a captação indiscriminada de comunicações, sendo crime fazê-lo fora das hipóteses permitidas, e limita ainda mais o uso do produto disso como prova em processos judiciais. Vale ressaltar, entre as possibilidades legítimas:

A interceptação com autorização judicial para produzir provas no âmbito de investigações criminais específicas, conforme artigo 1º e seguintes da Lei 9296/96

A gravação de audiência judicial por qualquer das partes independente do conhecimento dos outros presentes, conforme artigo 367, § 6º, do Código de Processo Civil;

A gravação de conversa telefônica ou captação ambiental por um dos interlocutores independentemente do conhecimento disso pelos outros.

Todas essas modalidades são legais e podem ser usadas como prova em processos judiciais. Não nos esqueçamos – sem que isso seja um convite ou um incentivo a qualquer brincadeira de arapongagem – que eventuais mídias ilícitas podem sempre ser usadas como meio de defesa, e só defesa, no processo penal, e só no penal. Sem prejuízo de eventual apuração e de responsabilização por crime de quem tenha promovido o grampo.


Fábio Dutra é advogado criminalista formado pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco – USP (Universidade de São Paulo). É membro do Demetrios Kovelis Advogados. Também foi diretor do Grupo Glamurama e editor-chefe da Revista Poder.

Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2022/Prova-ou-crime-Gravar-conversas-nem-sempre-%C3%A9-permitido

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